quarta-feira, 20 de julho de 2011

Causa nobre – e bom salário

Sua empresa tem uma boa causa? A deles tem. Com oportunidades de carreira, profissionalização e aumento substancial de salários, as Ongs estão atraindo alguns dos melhores profissionais.

Até 2009, a paulistana Luciane Malta vivia no luxo. Depois de quase uma década à frente de lojas das grifes H. Stern, Chopard e Iódice, estava prestes a aceitar um convite para dirigir no Brasil a primeira butique da marca francesa Louboutin, que vende sapatos reconhecidos a metros de distância pelos solados vermelho escarlate. Seria o ponto alto de uma década de carreira no ramo. Mas uma ONG atravessou seu caminho. Em meio às negociações com o Grupo Jereissati, que estava trazendo a Louboutin para o Brasil, Luciane foi convidada para uma entrevista de trabalho na Operação Sorriso, uma entidade americana que realiza cirurgias corretivas de uma deformidade labial em crianças carentes. Interessados na sua agenda de contatos e no seu talento comercial, os diretores da ONG plantaram a semente da dúvida na vida profissional de Luciane. “Eu tinha um emprego bacana me esperando e um convite totalmente inesperado do terceiro setor”, diz ela. Depois de seis meses de negociações e quatro entrevistas, Luciane aceitou a oferta da Operação Sorriso. O motivo principal foi a causa nobre. Mas a ONG lhe ofereceu uma remuneração bastante razoável. “Meu salário hoje é só 30% menor do que o que receberia na iniciativa privada”, diz ela.

Luciane faz parte de um grupo ainda pequeno na vanguarda de uma tendência que abre novas perspectivas no mercado de trabalho: o de profissionais da iniciativa privada que trocam seus cargos em empresas de elite por postos de direção no terceiro setor, sem ter de fazer grandes sacrifícios financeiros para isso. De acordo com a Mariaca, uma das consultorias com maior experiência no recrutamento de executivos para ONGs, os rendimentos em entidades bem estruturadas já chegam a R$ 240 mil anuais. Nos cargos de gerência e coordenação de projetos, a remuneração mensal vai de R$ 5 mil a R$ 10 mil. Pacotes de benefícios, antes restritos a planos de saúde e previdência, agora podem incluir carros e celulares.

Ainda é pouco, se comparado ao rendimento médio anual de R$ 700 mil de um diretor nas grandes empresas. Mas a remuneração do executivo- ongueiro tem aumentado, em média, 20% ao ano desde 2008. “Essa melhora consistente tem colocado as ONGs no radar de profissionais que antes achavam que o terceiro setor jamais seria um mercado de trabalho”, diz Lucimara Letelier, diretora da consultoria Management Center, que faz planejamento estratégico para organizações sem fins lucrativos.

Os salários pagos pelas ONGs são um fator fundamental por trás da guinada que alguns profissionais têm dado em suas carreiras. Mas este é apenas o elemento mais visível e fácil de detectar no curto prazo. Por trás da mudança, há um movimento internacional que se iniciou com a crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos. “As doações diminuíram [nos Estados Unidos e na Europa], e as ONGs estrangeiras que antes investiam em ações sociais ou ambientais no Brasil passaram a enxergar o país também como uma promissora fonte de recursos”, diz Tácito Maranhão Pinto, um consultor que recruta executivos para entidades filantrópicas.

Ao mesmo tempo, as ONGs locais se profissionalizaram e abriram canais mais eficientes de captação, aumentando a disputa por recursos financeiros nacionais. a partir desse ponto, a matemática é simples: quanto mais bem gerida uma entidade, maior a sua chance de convencer empresas ou pessoas físicas a abrir a carteira. “O terceiro setor viu uma oportunidade e entendeu que contratar executivos era parte do jogo”, afirma Claus Blau, executivo da consultoria Korn/Ferry que tem conduzido processos de seleção para fundações na área de sustentabilidade.

O PIONEIRO

Eduardo Queiroz, um dos diretores da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que investe em programas educacionais para crianças de até 6 anos, é um precursor da onda de migração de profissionais das empresas para as ONGs. Sua hora da verdade chegou em 1997, quando ele tinha só 23 anos, por meio de uma carta – escrita com a própria letra. Datada de seis meses antes, ela trazia os planos que Queiroz havia traçado para si mesmo durante as 24 horas que passou enfurnado em uma barraca, pensando na vida, em um acampamento em Montana, nos Estados Unidos. Em uma expedição organizada por uma ONG chamada Outward Bound, que promove atividades de educação a céu aberto, Queiroz escrevera para si próprio dizendo que, no futuro próximo, deixaria o banco de investimentos onde trabalhava para se dedicar a outra atividade, possivelmente no terceiro setor. “Tomei um choque quando recebi a carta, enviada pela Outward Bound”, diz. Foi assim, no susto, que ele decidiu fazer um plano para deixar de vez a vida – e os bônus – de operador de banco de investimentos. “Eu ganhava muito dinheiro e poderia ganhar mais, mas não estava feliz com o meu trabalho”, diz. Três anos mais tarde, Queiroz trocou um salário mensal de R$ 30 mil no banco BBa (hoje Itaú BBa) por um de R$ 3 mil na própria Outward Bound.

Onze anos atrás, foi preciso arcar com um considerável custo financeiro para mudar de vida. Mas, assim como sua carreira, a realidade do Brasil e das ONGs brasileiras mudou radicalmente na última década. Hoje na Fundação Vidigal, Queiroz tem algo mais que convicção para sustentar sua decisão ao final de cada mês. “Ganho muito menos que a minha turma do mercado financeiro, mas de forma nenhuma vejo meu trabalho como profissão de fé”, afirma. “Sou um executivo, tenho de cumprir minhas metas e cobrar as dos outros. A diferença é que agora o meu ‘mercado’ é a área de educação.”

Administrador de empresas com mestrado em políticas públicas pela Harvard Kennedy School, Queiroz é o caso típico de profissional altamente qualificado que, graças ao amadurecimento do terceiro setor, pôde seguir sua vocação. “Acho difícil voltar para uma empresa”, diz. De acordo com a Korn/Ferry, há dois tipos de executivos migrando da iniciativa privada para o terceiro setor. O maior grupo, no qual Queiroz se encaixa, é dos profissionais que tomam a decisão de mudar por volta dos 30 anos, na fase em que geralmente se completa a primeira década de uma carreira. “São pessoas que fazem a transição antes de assumir grandes responsabilidades, como filhos ou despesas com imóvel”, diz Blau. O segundo tipo é dos profissionais tarimbados que passaram dos 50 anos e enxergam nas ONGs a trilha para uma segunda carreira. Neste grupo estão pessoas que há tempos têm afinidade com causas sociais ou ambientais, mas atravessaram décadas em que ser um executivo do terceiro setor inspirava comentários desabonadores. “Há 20 anos, as pessoas que iam para essa área eram taxadas de idealistas ou fracassadas”, diz Lucimara, da Management Center. “Esta é a primeira geração de executivos seniores que pode conjugar uma causa com um trabalho.”

Celso Fernandes, de 62 anos, é um exemplo do segundo grupo. Ele hoje é diretor da subsidiária brasileira da Visão Mundial, uma organização que combate a pobreza extrema entre crianças e adolescentes e está presente em 100 países. Quarenta anos atrás, Fernandes saiu diretamente da faculdade de engenharia mecânica para a IBM, onde ficou por 23 anos. Ocupou diversas posições até chegar a diretor. Depois de deixar a multinacional, teve uma franquia de lavanderias, que não vingou, e uma consultoria empresarial. “Quando eu estava com 57 anos, surgiu um convite para dirigir uma ONG.” Fernandes disse sim e assumiu um cargo executivo no Comitê para Democratização da informática (CDI).

À frente de uma equipe de 240 profissionais (que chegam a mil quando se contam os voluntários), ele diz ter uma rotina mais atribulada que a das empresas por onde passou. “No ano passado, viajei 150 dias”, afirma. Compromissos profissionais o levaram a inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Nicarágua, Panamá, Costa Rica, Tailândia, Indonésia e Austrália. Hoje, um dos seus maiores desafios é diminuir a dependência de capital externo da operação brasileira da Visão Mundial. Há três anos, 83% do capital investido aqui vinha de fundos internacionais. Com ações locais para aumentar o número de doadores individuais, Fernandes reduziu essa taxa a 68% no ano passado. No mesmo período, o montante de arrecadações cresceu de R$ 26 milhões para R$ 34 milhões. “Tenho mentalidade de homem de negócios”, diz. Sua próxima meta é elevar o número de pessoas físicas que fazem doações, dos 12 mil atuais para 33 mil. “se a austrália tem 400 mil, podemos ir mais longe.”

PÉ NA ESTRADA

Os 150 dias ao ano de viagem de Fernandes não são propriamente uma exceção na carreira dos executivos que trocam empresas pelo terceiro setor. Várias ONGs estrangeiras que atuam no Brasil incentivam seus funcionários a adquirir vivência internacional. Tal qual uma empresa multinacional, essas organizações mantêm aberta uma via de mão dupla para seus talentos. Executivos estrangeiros têm a chance de vir trabalhar no Brasil; brasileiros promissores podem ir se provar lá fora.São frequentes, também, os cursos, treinamentos e as oficinas de curta duração no exterior. “A possibilidade de carreira internacional aproxima o terceiro setor das melhores empresas e é mais um atrativo para os talentos”, diz Lucimara.

A oportunidade de desenvolver uma carreira fora do Brasil foi um dos fatores que motivaram a economista mineira Daniela Barone a mudar de profissão. Depois de dar os primeiros passos da carreira nos bancos Citibank, BankBoston e Goldman Sachs, ela assumiu a direção da Impetus Trust, uma entidade britânica que auxilia outras organizações não governamentais com aporte de capital e ferramentas de gestão. “Levo para as ONGs as técnicas que aprendi na indústria de private equity, para potencializar o impacto das suas ações.” Baseada em Londres, Daniela tem circulado por partes da capital inglesa que não estão nos guias turísticos. Na semana em que conversou com Época NEGÓCIOS, ela esteve no presídio High Down para ver de perto os avanços de uma ONG apoiada pela Impetus e encontrou- se com Nick Hurd, o ministro responsável pelas políticas públicas para o terceiro setor.

A união das ferramentas do mundo empresarial às causas do terceiro setor tem dado resultados. O mais recente foi o acesso ao equivalente a R$ 325 milhões de um fundo público para investir em ONGs dedicadas a aumentar o rendimento escolar. Será um desafio sem precedentes para a Impetus, que ao longo dos seus oito anos de existência aportou R$ 40 milhões em outras ONGs. Em 2008, Daniela foi eleita pelo jornal The Independent uma das 100 pessoas que fazem do Reino unido um lugar melhor para viver.

Revista Época

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