SAMUEL PESSOA Revista Época

No Brasil, nem a sociedade nem as elites que tomam as decisões têm
convicção de que os mercados precisam de liberdade para funcionar bem. A
adoção de políticas favoráveis a essa liberalização vem e vai em
ciclos. Normalmente, um ciclo desses começa por causa de um cenário
externo, que nos joga em direção à liberalização. No entanto, choques
também externos que atinjam a economia servem de pretexto para que o
penoso processo seja abandonado. A elite dirigente se volta, então, ao
remédio de sempre: o Estado.
Que fique claro, não o Estado em sua função fundamental de tributar a
sociedade e, em troca, oferecer serviços de seguro social, que protejam o
cidadão das oscilações e riscos naturais de uma economia de mercado.
Não o Estado que exerça seu saudável papel de reduzir as desigualdades
herdadas do passado e as construídas pelo funcionamento do mercado. O
Estado que se busca como remédio teria a capacidade de promover o
desenvolvimento. Teria a capacidade de vislumbrar, por algum critério,
quais setores produtivos são prioritários e dirigiria a eles os esforços
públicos e privados.
Diferentemente do que se pensa, há conflito entre os dois Estados. O
Estado de bem-estar social e o Estado desenvolvimentista disputam verbas
do orçamento público. Não é por outro motivo que, dos anos 1950 aos
1970, no período do nacional-desenvolvimentismo, o Estado brasileiro
investiu, em média, ridículo 1% do PIB
em educação fundamental. Ao mesmo tempo, a taxa anual de crescimento da
população beirou 3%. A consequência desse subinvestimento em educação
foi a tragédia social dos anos 1980: favelização das grandes cidades,
deterioração dos espaços públicos e explosão da criminalidade.
A falta de convicção da elite dirigente, à direita e à esquerda, nas
instituições liberais de regulação econômica produz ciclos que se
repetem com surpreendente semelhança. Não se requer do analista
capacidade superior de observação para enxergar a repetição compulsiva,
nem se trata de repetição burlesca de tragédias anteriores. Trata-se de
repetição simples, como se a sociedade teimasse em não aprender. Nos
últimos 50 anos, vivemos dois ciclos idênticos, em que um cenário
externo leva à liberalização econômica. Depois, retomamos o crescimento,
o cenário externo muda, recuamos nas reformas, estatizamos a economia
e, no fim, reduzimos novamente nosso potencial de crescimento.
O primeiro desses ciclos iniciou-se no governo do presidente Humberto de
Alencar Castello Branco (1964 a 1967), em seguida ao golpe que
instituiu a ditadura militar. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental
cresciam vigorosamente. O Programa de Ação Econômica (Paeg) do novo
governo brasileiro, entre outras medidas, promoveu uma reforma
tributária, trabalhista, creditícia e monetária, além da redução das
tarifas de importação, o que abriu a economia ao comércio exterior. Um
conjunto enorme de leis e emendas constitucionais somente possíveis em
períodos de exceção criou as bases para a retomada posterior do
crescimento. A maturação das reformas institucionais do Paeg, em
associação com um ciclo de crescimento da economia mundial, produziria
as fortíssimas taxas de crescimento observadas no período do “milagre
econômico”, até os anos 1970.
Mas o primeiro choque externo do petróleo, em 1973, interrompeu o
período do milagre. A resposta da política econômica, sob o presidente
Ernesto Geisel (1974 a 1979), foi expandir o papel do setor público na
função de promotor do desenvolvimento. Uma solução alternativa teria
sido permitir a desaceleração ou até o encolhimento da economia, por
certo período, para que os diversos setores absorvessem a perda de
renda. Essa perda era real, já que o que o Brasil importava (petróleo)
se tornara relativamente muito mais caro do que o que o país exportava.
Mas admitir essa realidade estava fora de questão. Naquele momento, a
sustentação política do regime de exceção dependia do crescimento.
O governo lançou um segundo Programa Nacional de Desenvolvimento (II
PND). O plano exigia atrair capital externo, para compensar a falta de
poupança doméstica e manter o ritmo dos investimentos. Houve forte
endividamento de empresas privadas, com aval do Tesouro Nacional, para
bancar projetos duvidosos. Futuramente, essa dívida seria estatizada. O
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) passou a
atuar mais intensamente. Ficaram famosos os empréstimos do banco com
juros nominais prefixados, num período de inflação ascendente. Começou
um descasamento no balanço do setor público: seu ativo – ou os créditos
que acumulava com o setor privado – era expresso nominalmente, em moeda
nacional. Seu passivo – ou a dívida com o setor privado doméstico e
externo – era atrelado a algum índice de preços ou ao dólar. A origem do
problema era clara: o governo e agências do governo tomavam dinheiro
pagando juros mais altos e emprestavam dinheiro cobrando juros mais
baixos.
Além da mão pesadíssima do Estado na direção do investimento e seu
envolvimento financeiro direto, assumindo riscos monumentais, houve um
processo de convivência com a inflação e diversas tentativas de controle
direto de preços. Outro elemento importante do pacote foi a adoção, nos
projetos incentivados pelo setor público, de objetivos ambiciosos e
irrealistas de conteúdo nacional e de internalização praticamente de
toda a indústria de bens de capital. A economia se fechou ao comércio
internacional. O resto da história é conhecido e triste. Tornamo-nos,
nos anos 1980, uma nação comparativamente mais pobre, desigual e
atrasada.
Diversos estudos mostram que a aceleração do crescimento no período do
milagre econômico foi essencialmente um fenômeno de produtividade. Ou
seja, com um mesmo nível de crescimento do uso do trabalho e do capital,
a economia passou a ser capaz de crescer mais. A precedência temporal
do Paeg e a natureza do crescimento no período posterior – resultante de
forte avanço da produtividade – sugerem que o milagre econômico
resultou da melhora institucional promovida pelo Paeg. Há toda uma
literatura teórica e empírica recente que sugere que a produtividade
resulta de melhoras institucionais.
Estamos agora no ponto ruim de um segundo ciclo, igual àquele encerrado
nos anos 1970. Observamos a aceleração de crescimento na passagem do
governo de
Fernando Henrique Cardoso para o governo
Luiz Inácio Lula da Silva.
A aceleração, de pouco mais de 1,5 ponto percentual, foi integralmente
fruto da aceleração da produtividade. Não houve aceleração nas taxas de
crescimento das horas trabalhadas nem do estoque de capital. Não
coincidentemente, a aceleração do crescimento foi precedida por um
período de liberalização da economia, desta vez bem mais longo que o do
governo Castello Branco. A reforma feita na democracia é mais custosa e
lenta do que na ditadura, mas também mais sólida.
O longo período de reformas da economia que abriu o novo ciclo iniciou-se antes do governo FHC, com a abertura no governo
Fernando Collor de Mello. Terminou nos primeiros três anos do governo Lula, quando, com
Antonio Palocci
à frente do Ministério da Fazenda, muitas reformas elevaram a
eficiência da intermediação financeira e permitiram o funcionamento de
diversos mercados. A crise deflagrada pelas hipotecas de má qualidade
nos
Estados Unidos,
em setembro de 2008, serviu de justificativa para que houvesse forte
inflexão na política econômica. Isso nos jogou na fase final do ciclo.
Entre outros elementos, a mudança na política econômica inclui:
▪ alteração no regime de câmbio flutuante para fortemente administrado.
Nos últimos anos, vigora na prática o regime de câmbio fixo;
▪ tolerância com inflação maior. Há percepção generalizada de que o
Banco Central trabalha com uma meta informal de 5,5% ao ano de inflação;
▪ controle de preços para tentar conter a inflação. Isso é visível nos combustíveis e na política de desoneração tributária;
▪ expansão do papel do BNDES na intermediação do investimento. Como nos
anos 1970, as opções do banco são altamente questionáveis. Não há
literatura que sustente que a política de criar empresas campeãs
nacionais alavanque o crescimento;
▪ tendência a fechar a economia ao comércio internacional;
▪ direcionamento da política de desoneração tributária a alguns setores
ou bens, em vez de▪ estendê-la de forma equitativa a todos os setores
produtivos;
▪ aumento do papel do Estado e da Petrobras no setor de petróleo. Isso
ocorreu com o novo marco regulatório para o pré-sal. Ele dificulta os
novos leilões de áreas a explorar;
▪ aumento da dificuldade do governo federal para desenhar leilões de concessão de serviços de utilidade pública.
Esse conjunto de medidas de política econômica responde, em parte, pela
redução do potencial do crescimento da economia a que temos assistido
nos últimos anos. Desde a saída de Palocci do Ministério da Fazenda,
completou-se a última etapa da repetição: a excessiva intervenção do
Estado reduz a eficiência da economia e nos leva de volta a níveis
baixos de crescimento.
Essa interpretação é de um pesquisador que se filia à visão institucionalista do desenvolvimento econômico. Um pesquisador formado
na tradição do estruturalismo latino-americano considerará
essencialmente correto o pacote de políticas adotado desde a inflexão na
condução de política econômica de 2008. A convivência de diferentes
visões de mundo ou ideologias é inerente à ciência social. A
complexidade do fato social impede que haja experimento empírico capaz
de dirimir divergências.
Do ponto de vista da economia política, não há, na sociedade
brasileira, uma sólida base de apoio e consenso favorável ao )Estado
desenvolvimentista. Há, sim, forte consenso favorável ao Estado de
bem-estar social. Suas bases foram estabelecidas na Constituição de 1988
e, eleição após eleição, têm sido referendadas pelos eleitores. Não
enxergo a possibilidade de qualquer grupo político ter como agenda a
redução do Estado de bem-estar social. Mas, se persistir a dificuldade
do novo desenvolvimentismo em produzir crescimento, é natural esperarmos
uma ou mais candidaturas defendendo um modelo mais liberal na
economia.
Samuel Pessoa é pesquisador associado do Ibre-FGV e sócio da consultoria
de investimentos Reliance
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